O papel essencial das mulheres no cuidado com a demência: Desafios, custos e a voz da ABRAz

Roxana Silva Reyes, intrumentadora cirúrgica, cuida da mãe Maria Teresa Reyes — Foto: Maria Isabel Oliveira/Agência O Globo

As mãos e os corações que dedicam seu dia a dia ao cuidado de pessoas com Alzheimer e outras demências no Brasil são, em sua vasta maioria, femininos. Um estudo recente, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria e parte do Relatório Nacional sobre a Demência no Brasil (ReNaDe), revela um dado impactante: 86% dos cuidadores são mulheres. Este cenário não apenas destaca a dedicação dessas mulheres, mas também expõe os profundos desafios financeiros, emocionais e sociais que elas enfrentam.

Um perfil de dedicação e sacrifício

O estudo, realizado em 17 municípios brasileiros em 2023, traça um perfil dessas cuidadoras: a idade média é de 57,8 anos e quase um terço (29,3%) possui entre 9 e 11 anos de escolaridade. Esses dados, por si só, já indicam uma parcela da população que muitas vezes já está em idade de aposentadoria ou com suas próprias limitações, mas que assume uma responsabilidade vital e exaustiva.

“A visão social é de que é papel inteiramente da mulher de cuidar de todas as gerações. Seja filho, sobrinho, marido, pai e avô”, aponta a psiquiatra Cleusa Pinheiro Ferri, coordenadora do projeto do ReNaDe, enfatizando como as mulheres são frequentemente mais afetadas pela sobrecarga de multitarefas.

O peso dos custos: Financeiros e Indiretos

Além da dedicação pessoal, o cuidado com a demência impõe um ônus financeiro considerável às famílias. O estudo aponta que os custos aumentam conforme a progressão da síndrome:

  • Estágio inicial: a partir de R$ 5.513
  • Estágio intermediário: R$ 7.266,27
  • Estágio avançado: R$ 8.690,73

Preocupantemente, 73% desses custos recaem sobre os familiares mais próximos, como filhos e netas. Mas o impacto vai além dos gastos diretos. Os “custos indiretos” – perda de produtividade do cuidador, tempo dedicado aos cuidados e o impacto na qualidade de vida do paciente e da família – representam a maior fatia: 78,5% no estágio inicial, 81,8% no moderado e 72,9% no avançado. Isso significa que o sacrifício pessoal e profissional dessas cuidadoras é imenso.

A sobrecarga feminina e o apelo da ABRAz

A realidade de muitas dessas mulheres é de abdicação. A presidente da ABRAz, Celene Queiroz, ressalta que, no Brasil, muitas vezes uma única mulher arca com toda a responsabilidade. “O cuidado é colocado como uma qualidade inerentemente feminina. Muitas mulheres são contaminadas por esse tipo de pensamento, por isso que geralmente elas entram na frente. São mulheres que abdicam da sua vida, dos seus sonhos, para cuidar”, afirma a médica geriatra.

Tamires Alves, Secretária Geral da ABRAz na Regional de São Paulo, exemplifica essa realidade com a história de sua própria família, onde o cuidado com a avó, diagnosticada com Alzheimer, se tornou uma tarefa compartilhada entre as mulheres da família. Mesmo com rodízios e ajuda externa, ela descreve a rotina como uma “batalha”: “Em apenas um dia de cuidados, é como se você tivesse batalhado em dez guerras”.

Casos como o de Roxana Reyes, que viu seu relacionamento terminar por conta da decisão de acolher a mãe com demência, ilustram as rupturas pessoais enfrentadas. Muitas cuidadoras desenvolvem ansiedade e depressão, deixando sua própria vida em segundo plano.

Um futuro que exige ação coletiva

A projeção da renomada revista científica The Lancet, que indica que o número de pessoas vivendo com demência no Brasil e no mundo pode triplicar até 2050, torna a discussão sobre o apoio a esses cuidadores ainda mais urgente.

A ABRAz reforça a necessidade de iniciativas públicas robustas em níveis municipal e federal. “Na medida que a gente melhorar isso, também melhoramos, como consequência, a questão dos gastos que recaem em grande parte sobre as famílias e também da exaustão dos cuidadores que se vê atualmente”, conclui Cleusa Ferri.

É fundamental que a sociedade e o poder público reconheçam o trabalho invisível, mas vital, dessas cuidadoras. Oferecer apoio psicológico, capacitação, acesso a serviços de saúde e políticas de alívio da carga são passos cruciais para garantir que essas mulheres não precisem sacrificar suas próprias vidas em nome do cuidado. A ABRAz segue na luta por um futuro onde cuidar signifique também ser cuidado.