Este é o segundo de uma série de quatro artigos, aprofundando os valiosos insights do 3º episódio do ABRAz Talks. Se no primeiro abordamos o olhar essencial da geriatria na identificação precoce do risco de quedas, agora voltamos nossa atenção para um aspecto igualmente fundamental: o ambiente. Afinal, a casa, que deveria ser nosso refúgio, pode se tornar um campo minado para pessoas idosas com demência se não for planejada ou adaptada adequadamente.
A discussão sobre prevenção de quedas muitas vezes começa e termina com a simples instrução de “tirar o tapete”. Mas a realidade é muito mais complexa e sensível, como bem explicou Ciro Férrer, arquiteto e urbanista, durante o 3º episódio do ABRAz Talks. Sua visão nos convida a repensar a interação entre o indivíduo e seu espaço, especialmente quando a demência altera a percepção do mundo.
Além do tapete: o ambiente como extensão da cognição
Para Ciro Férrer, a ideia de que remover um tapete resolve todos os problemas é simplista e, muitas vezes, prejudicial. Para uma pessoa com demência, a casa é um mapa construído ao longo da vida. A remoção indiscriminada de objetos familiares – seja um tapete, um móvel ou um quadro – pode desorientar, fazer com que o idoso perca sua dinâmica espacial e até mesmo agravar sintomas neuropsiquiátricos como agitação e estresse. “Ela não reconhece mais a própria casa”, observa Ciro Férrer, ao descrever o impacto de um ambiente subitamente “limpo” de elementos conhecidos.
A chave, segundo ele, não é eliminar, mas adaptar e recontextualizar. Um tapete, por exemplo, pode se tornar um quadro, mantendo-se no campo visual e na memória afetiva do idoso, mas sem o risco de tropeços. O objetivo é mitigar riscos sem apagar a identidade do lar e a conexão emocional do idoso com seu espaço.
Estratégias de design para um ambiente protetor
A arquitetura, quando pensada para o envelhecimento e a demência, oferece soluções criativas e eficazes para minimizar os riscos de quedas:
- O poder do contraste visual: Nossos olhos mudam com a idade. O cristalino amarela, a visão periférica diminui e a percepção de profundidade pode ser afetada. Isso significa que, para um idoso, um piso branco e uma parede bege podem se misturar, dificultando a distinção de limites e aumentando o risco de tropeços. Ciro Férrer ressalta que “ter esse contraste aparente é extremamente importante”. A solução? Utilizar cores contrastantes entre piso e parede, ou entre móveis e o fundo, para destacar elementos e rotas. Por outro lado, para áreas perigosas, como armários de limpeza ou medicamentos, a estratégia é “disfarçar” a porta pintando-a na mesma cor da parede, de modo que a pessoa com demência não a perceba. O que “o ser não vê basicamente não existe”, resume ele.
- A iluminação que guia e acalma: Uma boa iluminação é crucial para a segurança e o bem-estar. Ciro Férrer destaca a importância de uma “iluminação integrativa” que respeite o ciclo circadiano do idoso. Durante o dia, é fundamental potencializar a entrada de luz solar e a iluminação interna para manter o corpo alerta. À noite, a luz deve ser mais quente e aconchegante, e a utilização de balizadores – luzes baixas que iluminam o caminho – pode guiar o idoso com segurança até o banheiro e de volta à cama, sem o choque de uma luz forte que causa confusão e tontura.
- Pisos: a simplicidade é a melhor escolha: Pisos com padrões complexos, muitas cores ou geometrias podem ser uma armadilha visual. Para um idoso, e especialmente para alguém com demência, esses padrões podem causar confusão, desorientação e até mesmo alucinações, fazendo com que interpretem desenhos como buracos ou rachaduras. Isso gera ansiedade, agressividade e estresse. A recomendação de Ciro Férrer é clara: investir em pisos com “padronagem simples, só uma cor mesmo”, como bege ou amadeirado, que também promovem relaxamento.
Envelhecer no lar: um direito, não um privilégio
A discussão sobre o ambiente vai além da casa individual. Ciro Férrer é um forte defensor do conceito de aging in place(envelhecer no lar), que propõe o planejamento residencial para a vida toda, adaptando-se às necessidades à medida que envelhecemos. Ele critica a falta de acessibilidade em espaços públicos e até em instituições, onde portas não permitem a passagem de cadeiras de rodas, por exemplo.
Para ele, a acessibilidade – arquitetônica, comunicacional, institucional – é um direito fundamental. Sua ausência é uma “violência imensa contra a pessoa idosa”, que a impede de exercer sua autonomia e dignidade. A reflexão do arquiteto nos lembra que a prevenção de quedas não é apenas uma questão médica ou individual, mas também uma responsabilidade da sociedade e do design dos nossos espaços.
No primeiro artigo, vimos como a geriatria identifica os riscos internos do indivíduo. Neste, exploramos como o ambiente construído se torna um pilar de segurança. Na sequência, nosso próximo artigo aprofundará o papel da fisioterapia, revelando como a reabilitação e o fortalecimento físico são cruciais nessa jornada de prevenção. Fique conosco para entender a importância de cada elo dessa corrente de cuidados.
Todas as citações foram retiradas do 3º episódio do ABRAz Talks, realizado no dia 30 de junho no perfil do Instagram da ABRAz (@abrazalzheimer).